domingo, 27 de outubro de 2019

Pós-termo

Havia escrito este texto para a formatura, há quase dois anos, mas ele não foi lido naquela ocasião. Agora, quase ao fim da residencia, creio que seja um bom momento para que seja lido. 



Fez-se o parto

Foi em 2012, ano em que alguns disseram que o mundo iria acabar, que tudo isso começou. Éramos calouros decorando nomes de estruturas do corpo humano e dos quase 50 colegas de classe. Cada um com seu sotaque, biografia e “motivos pelos quais escolheu o curso”. Posteriormente, toda a energia virginal de primeiro ano de faculdade precisou ser redescoberta, quando o que antes era novidade se tornou rotina. Vieram as disciplinas clínicas e cirúrgicas, que integravam os conhecimentos básicos às demandas dos futuros pacientes, aumentando a percepção de que estávamos começando a ser médicos.

Noites em claro, abdicação de programas muito mais divertidos do que confrontar textos densos e a inexorável certeza de que o tempo é uma questão de prioridades. Saudades dos amigos, dos livros sem conteúdos direcionados ao curso, das preferências ignoradas para o cumprimento de obrigações acadêmicas. Houve dias em que nos arrastávamos, cheios de sono e questionamentos sobre a importância de determinadas aulas e atividades. Atritos da convivência exacerbados pela tensão de semanas de provas e trabalhos. Apreensão de que o estudo fosse insuficiente para os desafios da vida profissional. Era cedo para reclamar e tarde para desistir.

Surgiu o internato: momento de praticar o que aprendemos durante quatro anos e desenvolver habilidades técnicas e emocionais. Privilegiados por aprender com os livros e seres humanos, não estávamos mais limitados às provas teóricas, assinalando uma alternativa correta: precisávamos desenvolver nossas próprias estratégias e despertar a confiança e a satisfação dos pacientes. O que a faculdade não homogeneizou em quatro anos, e estava latente em cada estudante, pode ganhar força e compor o estilo profissional que há de caracterizar cada um de nós.

Exercitamos a comunicação de más notícias, vimos os limites da área médica e o quanto precisamos evoluir. Doenças graves nos ensinaram a minimizar nossos problemas e tentar valorizar mais os aspectos da vida, dos quais só temos consciência ao ver que alguém é privado de algum deles. Amadurecemos com isso.  

Nos percebemos como futuros trabalhadores de um setor que recebe menos investimentos do que deveria e que lida com a dor, o medo e a fragilidade do ser humano. Condutores dos recém-chegados a este mundo, separando-os do paraíso uterino. Entusiastas do progresso da ciência, da cura e do alívio do sofrimento. O fim da jornada se aproximava a passos lentos, mas irreversíveis: em breve seríamos médicos. Passamos a almejar e temer o fim do curso, pelas responsabilidades que se seguiriam.

Engana-se quem pensa que deixamos de viver nesses seis anos: Fomos privilegiados por assistir partos, captações de órgãos, transplantes e o início de uma vida mais feliz ou mais longa depois de uma intervenção. Aprendemos as particularidades orgânicas de todas as fases da vida. Aprendemos com os pacientes e suas histórias e nos sentimos úteis em momentos decisivos. Tocamos o início da vida com as pontas dos dedos na obstetrícia, e vimos escoar das palmas das mãos nas manobras de ressuscitação na sala de emergência. 

A medicina é uma área tão generosa que lida com constantes inovações e proporciona o acolhimento de todas as pessoas, sem julgamento ou estabelecimento de uma sentença. Lidamos com o que é comum a todo ser humano, independente de sua classe social, orientação sexual, gênero, país de origem, etnia ou nível de instrução. Uma profissão que nos permite conhecer o mundo realizando trabalhos sociais, sem fronteiras. Que vai dos grandes centros de pesquisa e centros cirúrgicos às periferias e campos de refugiados. Nos permite adequar o próprio perfil a uma das várias especialidades existentes, todas diferentes e igualmente importantes.

Que possamos todos nos realizar e nos encontrar fazendo o que considerarmos relevante. Que tenhamos boas histórias para contar. Paramentados como profissionais, nos despindo de qualquer paradigma ou preconceito: judeus, homossexuais, cadeirantes, pais e mães jovens: somos todos seres humanos. Seres humanos, frágeis e capazes de errar. Capazes também de transpor barreiras e fazer o inimaginável se tornar realidade. Concluídos seis anos de uma gestação de intercorrências e boas surpresas, fez-se o parto dos profissionais. Estaremos sempre ligados aos colegas e professores por tudo o que vivemos. E que possamos sempre nos respeitar e guardar o melhor uns dos outros, pois tudo isso há de se resumir a saudades.