quinta-feira, 18 de maio de 2023

POR QUE PRECISAMOS DE VAGAS DE INTERNAÇÃO PSIQUIÁTRICA?

Preciso fazer um relato. Vou trocar o nome do paciente para que ele não seja exposto.

João era um rapaz de pouco mais de vinte anos. Chegou emagrecido, desconfiado, com muito medo do que só ele via e ouvia. A família demonstrava muito interesse em seu bem estar, estava sempre disposta a conversar sobre ele, querendo saber como ele estava e o que poderia fazer para que ficasse ainda melhor.

Ele foi avaliado pela equipe da nutrição, iniciou o uso de bloqueadores dopaminérgicos. Não se adaptou ao primeiro devido aos efeitos colaterais, portanto iniciou o uso de outra medicação. Aos poucos, com o ajuste de dose e o efeito do medicamento, começou a ficar mais comunicativo e menos assustado. Conseguiu ganhar o hábito de se alimentar sempre nos mesmos horários, tomar banho todos os dias, uso regularmente a medicação. Ganhou peso, eliminou a sensação de estar sendo sempre ameaçado de morte e ter necessidade de se esconder. As vozes e vultos que o atormentavam desapareceram. Ele teve a oportunidade de ocupar a mente com outros assuntos, passou a prestar mais atenção no mundo que as outras pessoas também viam, ouviam e sentiam.

Ficou em torno de dois meses sendo acompanhado por mim e pelo restante da equipe. Recebeu alta. Eu não vou conseguir expressar a alegria que temos quando um paciente se recupera e recebe alta, mas há algo que supera essa alegria: reencontrar o paciente tempos depois e ver que ele continua bem.

João me deu essa oportunidade! Diria que o momento mais gratificante naquele ambulatório, naquele ano,  foi atender o João após seu internamento. Ele estava bem e pela primeira vez iria participar de uma viagem em família: ele iria à praia no final do ano. Estava recuperado, novamente integrado ao seio familiar, com a promessa de novas experiências e conquitas.

Há critérios definidos para o internamento. Entende-se que situações de emergência, sem possibilidade de resolução fora do internamento, culminem em internações. Se alguém se encontra em situação de urgência ou emergência, seus acompanhantes não hesitarão em procurar atendimento, ainda que o indivíduo não perceba a gravidade de seu quadro e não deseje ser atendido. Quem se recusaria a levar um familiar ao pronto atendimento se estivesse tendo um acidente vascular cerebral ou um infarto caso a pessoa alegasse que não desejaria ficar internada? Haveria possibilidade de reparar danos após o internamento, entender-se com a pessoa, mas não haveria essa possibilidade caso ela falecesse pela falta de atendimento. A internação psiquiátrica pode ser entendida sob essa perspectiva: necessidade de intervenção para evitar maiores danos.

Reféns de quadros como esquizofrenia ou transtornos de humor, ou ainda da dependência química encontram na internação hospitalar o último recurso: a internação se torna a oportunidade de salvar sua vida, recuperar a saúde, interromper a via crúcis que os levaria à falência, à morte ou a atitudes violentas que fariam estragos irreversíveis. É uma pausa necessária para pensar no que os fez chegar àquela situação e no que pode ser feito para resolvê-la. É um modo de desacelerar, conhecer a si mesmo sem efeito de substâncias psicoativas ou sintomas psicóticos. É o momento de receber cuidados e orientações. Receber visitas e ligações dos familiares. É uma oportunidade de despertar e iniciar uma nova vida.

Não cabe a nós decidir que famílias e cuidadores devam arcar sozinhos com a responsabilidade de conter pacientes em surto com comportamentos violentos, que tragam riscos para o indivíduo ou para outras pessoas, bem como situações de evasão, andando “a esmo” ou de dano ao patrimônio. Lembrando o princípio da universalidade, não se pode abandonar pacientes e famílias nessas situações. E garanto a vocês que todos nós desejamos que esses pacientes não precisem ser internados novamente, que há uma torcida enorme para se libertem do sofrimento.

Não seria razoável supor que poderíamos reduzir a quantidade de leitos para emergências cardiológicas pelo fato de promovermos maior assistência ambulatorial em cardiologia, por exemplo: entende-se que as emergências podem ocorrer, ainda que haja assistência ambulatorial. Do mesmo modo, não há como assegurar que internações psiquiátricas não serão necessárias pelo fato de conseguirmos aumentar a assistência ambulatorial.

Quanto aos pacientes, há uma dificuldade de inserção e permanência no mercado de trabalho, nas instituições de ensino. E mesmo aqueles que está inseridos podem ter receio em relatar um internamento psiquiátrico devido ao preconceito. Essas fatores podem aumentar a invisibilidade da população que necessita ou já necessitou passar por uma internação.

Mas talvez eu não tenha mais relatos como o do João para contar, pois o desfecho de muitos outros pacientes que necessitem ser internados seja diferente: há o risco de diminuir as vagas de internamento, desamparando os pacientes e seus familiares. Cabe a nós dialogar com a sociedade, romper o silêncio que perpetra “bichos-de-sete-cabeças”. Divulgação científica, divulgação do trabalho que fazemos, respeitando a privacidade dos pacientes. É importante que os hospitais psiquiátricos sejam entendidos e lembrados como instituições de cuidado e preservação da vida, como os demais serviços de saúde. E que assim como João, possamos todos nos comunicar melhor e nos libertar de nossos fantasmas, entendendo que o presente e o futuro não precisam se parecer com o passado.