quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Boca livre

O soteropolitano Gregório de Matos, considerado o maior poeta barroco brasileiro, era chamado "Boca do Inferno", por seus protestos rimados feitos em praça pública. Escárnio inteligente: humor politicamente incorreto no século dezessete.



Muito antes dele, como surgimento do teatro grego, havia peças denominadas comédias. Nelas, tudo poderia ser satirizado e era comum esse tipo de apresentação ter caráter político.



Gregório também viveu séculos antes da ditadura militar, de modo que podia gozar de liberdade de expressão (para gozar de todo o resto). A censura impedia protestos de forma direta, induzindo artistas a "disfarçar" aquilo que queriam dizer. Só os atentos captavam as mensagens que as autoridades deixavam passar na fiscalização. Assim, no período destacaram-se compositores inteligentes, como Chico Buarque, cujo cálice foi afastado com a abertura política, ao fim da década de oitenta.



Geraldo Vandré foi mais direto na canção "Pra Não Dizer que Não Falei das Flores", sendo duramente perseguido.



A censura aos meios de comunicação, no Brasil, teoricamente teve seu fim quando os militares deixaram o poder. Hoje o conteúdo a ser exibido precisa do alvará de editores e patrocinadores dos programas. Há sempre o risco de desagradar pessoas influentes e o problema tende a ser resolvido judicialmente, com aplicação de multas e indenizações.

Foi o que ocorreu com o comediante Rafinha Bastos, durante o "CQC" ("Custe o que Custar", exibido ao vivo, às segundas feiras, na Band). Anteriormente criticado por "apologia" ao estupro, afirmando que "quem estupra mulher feia merece um abraço", em sua última aparição no programa, Rafinha brincou com a gestante Wanessa Camargo, dizendo que "comeria" a cantora e seu bebê. A insinuação foi feita após comentário do jornalista Marcelo Tas, seu companheiro de CQC, de que Wanessa estava muito bonita grávida.

A piada sobre estupro rendeu a Rafinha o dever de se explicar ao Ministério Público, mas nem por isso a emissora excluiu o humorista de seu programa. Já o comentário sobre Wanessa, que em minha interpretação foi que Rafinha teria relação sexual com Wanessa estando grávida (assim transaria com a moça e o bebê simultaneamente), desagradou patrocinadores: Ronaldo Nasário (o "Fenômeno") telefonou à emissora para reclamar do conteúdo. O outro apresentador do CQC, Marco Luque, que tem um contrato com a Claro (sendo colega de Ronaldo) é conhecido de Wanessa e seu marido. Luque, apesar de rir da piada de Bastos ao vivo, publicou nota criticando a piada. Pesquisas com internautas constataram que a brincadeira do comediante foi altamente reprovada. Pela repercussão, é provável que minha interpretação da piada tenha sido muito ingênua ou otimista.



O fato é que, além de ter sido afastado do programa, o apresentador deixou de ter uma de suas matérias exibida, na semana seguinte: era uma conversa com crianças para saber o que pensavam sobre política e economia (foi anunciada em seu twitter). O CQC, sem Rafinha na bancada, não exibiu a reportagem, talvez para não mostrar a imagem do apresentador, "desgastada" após o incidente com a cantora. Já diziam os mafiosos: "abra a boca e a carteira com cautela". Alguns jornais afirmam que Rafinha Bastos pode ter que pagar uma indenização de cem mil reais ao casal, além de poder ser submetido a três anos de reclusão.

Mais reprovável que a atitude do humorista é a de querer punir com cadeia alguém que faz uma brincadeira em um programa ao vivo. Por pior que seja a piada (não só a feita por Bastos), uma suspensão na atração televisiva, o pagamento de uma multa (em valor que não precise chegar a cem mil reais) ou uma retratação seriam suficientes, em minha opinião. Detenção seria uma punição extrema, que além de exagerada para o caso (a meu ver), traria medo a outros profissionais da comunicação e do humor.

A repressão militar teoricamente não afeta mais a mídia. Mas talvez seja útil preservar a "censura do bom senso", medir as palavras quando dirigidas a um grande público. No caso de Rafinha, o humor "politicamente incorreto" é desnecessário, exagerado, chegando a ser grosseiro. O politicamente incorreto poderia ter apenas um caráter ativista, de protesto contra instituições ou líderes (por motivos justificáveis), mas tornou-se "obsessão" de alguns comediantes, possivelmente para atrair mais atenção. Humor inteligente não significa humor grosseiro: pode partir de observações, constatações, um sarcasmo mais leve e sutil. Do mesmo modo, quando desagradar alguém, deve haver negociação. A repressão para profissionais da comunicação também não precisa ser grosseira ou exagerada, como o cárcere. Por mais que se queira evitar a "libertinagem de expressão", deve ser mantida a liberdade de expressão.

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